terça-feira, 26 de outubro de 2010

À luz de tudo isso, desfaço-me de qualquer pretensão à grandeza e recolho-me em minhas singelas plumas. De coisas ínfimas se faz uma vida - alpiste crocante, castanhas adocicadas, frutas tenras, banho de sol, água fresca, brisa benigna, papagaias espirituosas, bons amigos. De coisas ínfimas se faz uma vocação...

Prosa de papagaio, Gabriela Guimarães Gazzinelli

sábado, 16 de outubro de 2010

Poesia

Gastei uma hora pensando num verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Já perceberam...

Que o camaleão está sorrindo?

Ocaso

Naquela noite, o relâmpago do acaso prorrompeu no céu com tanto ímpeto que o rasgou em dois. Choveram prantos nas vizinhanças. Porém, quem mais lacrimejava perante àquela intempérie era o próprio céu, por motivos óbvios.

Os carros, eu mesmo os vi, estavam metade submersos; tanta era a água que o céu chorava. Trataram, então, os ratos de nadarem naquelas grandes piscinas de lágrimas , antes chamadas ruas, para o pavor das mulheres. Estavam cansados do marasmo dos bueiros. Os religiosos – Deus os tenha – procuraram alguma ligação com o dilúvio, com Noé, com o antigo testamento. Alguns pensaram em construir uma arca; mas o problema era os animais: só havia ratos.

Todo esse "dilúvio" causou enchentes pelas cidades em dois tempos, como dizem. Alguns músicos sobreviventes escreveram sobre o ocorrido num único compasso 2/4.

Seria de todo incômodo o desgraçado do relâmpago, se não os unisse naquela mesma noite. Ela sem ter como voltar para a casa, ele oferecendo-lhe a sua. Nada havia entre os dois antes; agora eram amantes. Se amaram através da noite, absortos da tempestade, dos ratos, da vida, do mundo. E do mundo e da vida.

Passaram-se as horas, os dias nas horas, as semanas nos dias, os meses nas semanas e, por fim, passaram-se os anos. A chuva não passou. Chove até hoje. E até hoje, submersos e esquecidos, eles continuam se amando. O acaso, ou destino, sorriu-lhes do horizonte e desapareceu no ocaso para se juntar às estrelas, na certeza de que cumprira seu papel.