sábado, 25 de setembro de 2010

Apagou o cigarro no cinzeiro sobre a mesa. O ambiente, por si só, é apagado: vermelho carmesim, empesteado daquelas rêmoras que, agregadas à fera, sentem-se saciadas com os restos que a elas chegam. Aqui, porém, a fera era os restos; estes, por sua vez, deixados pelos pequenos peixes, uns aos outros.

Predominava a espera, o ensejo. Era preciso. É verdade que tudo aqui exala um perfume cálido; mas aquelas rêmoras, agora tubarões, não se importam com o perfume. Lúbricos e abastados, como bons senhores que são, esperavam. Ela também esperava, nada abastada, diga-se de passagem; mas lasciva, talvez. Valhe-se o dito popular que diz: "Aquele que só pensa em trabalho, torna-se maçante".

Quando enfim ela é encontrada, torna-se tudo uma verdadeira festa. Lençóis emaranhados, travesseiros jogados, alarias que incluem todo o tipo de palavras daquelas inevitáveis. Claro que, da parte dela, são palavras um pouco aleivosas, mas isso não vem ao caso. Estão lá a mulher com espírito de tartufo - ou o tubarão de antes - e a rêmora. A rêmora devora a fera. Mas, se acabou-se o tempo, já lá se vai o gozo.

Apagou o cigarro no cinzeiro sobre a mesa e espera o próximo. Talvez, por displicência, uma mera negligência destas jogadas a esmo, não percebem estes senhores que eles próprios são as putas. E está para nascer, quem sabe por outra negligência, o legítimo, o puro, o filho da puta.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Li o que segue em um marca-páginas que uso. É o único que possuo, portanto me habituei a usá-lo constantemente e resolvi colocar seus dizeres aqui.

Está escrito:

"O essencial da arte e exprimir; o que se exprime não interessa".

Fernando Pessoa

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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

No terceiro dia da viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes.

"Caim", José Saramago

O artista

O artista sabe que é preciso
morrer aos poucos para produzir.
Ele sabe ser conciso;
sabe quando deve fingir.

Tão excelente fingidor ele é,
que pensa ser mesmo um cientista,
profeta, professor, cantor, artista...
Brinca de ser ateu e fala de fé.

E, ao final de sua obra recente,
o artista pensa ser ela a melhor.
Mas, quando fala a alguém ali presente,
é só artista a falar de amór.


Aos senhores Jorge Rezende e Cesar Carvalho

sábado, 18 de setembro de 2010

A criação

No firmamento
estavam a música,
a pintura, a literatura
e todas as outras artes
a foder.

E, assim, foi criado o mundo.

A caieira dos sonhos

Ao carrilhão apetecia que as zero horas de um momento qualquer – nota-se que não estamos tratando disto com precisão, ainda que esta seja necessária às ciências – fossem recebidas com suaves badaladas de sinos que muito se conhecem no páramo, de modo que apenas esses notáveis relógios sabem fazer.

Não era manhã, e nem Hipnos havia corrido por todo o céu: eram apenas zero horas. Não era, também, situação idônea para ser classificada dentro dos limites do aqui e do agora. Era um sonho... Isto! Um sonho o era, pois. E esse admirável relógio que lá habitava tornava para si todos os holofotes de protagonista.

Na verdade, não havia holofotes. O relógio encontrava-se suspenso num ambiente caiado e estava à vontade para badalar suas zero horas. Para sempre. Ora, todos conhecemos os sonhos e suas porfias: cidades são erguidas em meio ao ermo e à solidão, orgasmos são consumados para o deleite dos amantes, o mundo é consumido ferozmente pelo fogo de tempos derradeiros e, em seguida, recriado e agraciado com um sol fulgurante, tudo num piscar de olhos. Entretanto, assim como os holofotes, os olhos estavam ausentes do sonho, o que é menos surpreendente que comum.

Quando é desejo dos sonhos, o tempo é ignorado, tal como fazemos com o real. E, naquele relógio que só registrava passado, o real se apresentava sem rodeios. Morfeu era o relógio, e o relógio era Morfeu. Ele vencera.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A mulher desesperou-se - Não há nada mais para vender. Enquanto isso, o que nós vamos comer? - perguntou a mulher, agarrando o Coronel pelo colarinho.
Sacudiu-o com força.
- Diga, o que nós vamos comer?
O Coronel precisou de setenta e cinco anos - os setenta e cinco anos de sua vida, minuto a minuto - para chegar àquele instante. Sentiu-se puro, explícito, invencível, no momento de responder:
- Merda.

"Ninguém Escreve ao Coronel", Gabriel García Márquez.